FACULDADE DE MEDICINA DO PORTO

ORIGENS, MEMÓRIAS E DESÍGNIOS

 

 

 

Prof. Doutor Falcão de Freitas.

 

 

 

O meu mais sentido agradecimento ao Prof. Miranda Magalhães, Presidente do Conselho Directivo da Faculdade de Medicina do Porto, pelo convite que me dirigiu para proferir uma das Conferências da Cerimónia anual, comemorativa do Dia da Faculdade de Medicina do Porto.

 Embora consciente das dificuldades do desempenho desta tarefa, aceitei-a, sem reservas, e mesmo com júbilo, pelas seguintes razões: 1º- a solicitação ter partido do Presidente do Conselho Directivo, modelo de dedicação à instituição universitária; 2º, porque me deixou total liberdade na escolha do tema; 3º, por se conjugarem, em escassos três meses, a comemoração dos 175 anos da fundação da Real Escola de Cirurgia do Porto, os 200 anos do nascimento  de Passos Manuel, que como Ministro do Reino teve a influência mais decisiva na reformulação do ensino em Portugal nos últimos 2oo anos, incluindo o ensino médico, e o início do 3º milénio, o que constitui sempre um marco de reflexão das diferentes áreas, particularmente de uma, a pratica médica,  que teve um progresso, particularmente no final do Século XIX e no Século XX, ao mesmo tempo alucinante e sustentado, com a cartografia do Genoma humano conseguida já no final do Milénio.

Equacionados os termos do convite e da aceitação, referirei que desde Outubro de 1950, convivi 50 anos, primeiro como aluno, depois como docente, com o ensino médico praticado na nossa Instituição. Esta faceta curricular deu-me alento e ousadia para vos apresentar as possíveis origens do “genoma”, mesmo na fase de DNA não organizado, as memórias e as interacções socio-ambientais da nossa Instituição, terminando com os desígnios que daí resultaram, já que as incertezas e a idade avançada do cartógrafo não lhe permitem avançar para um projecto de futuro  consolidado, com a clarividência e rigor indispensáveis à sustentação de uma liderança.

Não farei uma descrição histórica pormenorizada, isto é, um filme, ou mesmo uma sucessão datada de clichés, por redundante, dada a qualidade da obra sobre a história da Universidade do Porto do Prof. Cândido dos Santos e da alocução da Profª. Amélia Ferraz nesta Sala e em cerimónia idêntica, quando tratou da Escola Médico-Cirurgica do Porto.

 

Ao basear as minhas escolhas  no conceito de Sartre da existência de uma “Age de la Raison” , optei por um ensaio existencialista, com algum grau de libertinagem, que integre os tempos e as pessoas na sua mundividência e com dois pressupostos: só vincula o palestrante, e este só está vinculado à sua capacidade ou incapacidade reflexiva. Tratar matérias tão amplas e complexas, privilegiando escolhas com um critério interiorizado, em principio não explícito, poderá roçar uma deriva anarquista mas, entenda-se, não anarquizante.

 

As Origens e as Memórias

 

 

A origem do ensino da Cirurgia no Porto está ligada ao Hospital da Misericórdia, a um nível bastante rudimentar, no início do século XIX, isto é, pouco tempo depois da sua inauguração.  A despeito da espontaneidade deste ensino, há uma reflexão importante – o início dos estudos médicos é feito essencialmente na Instituição na qual o ofício se praticava, o seu currículo resultava da natureza da sua prática, com a Anatomia desempenhando um papel de tal modo essencial, que provavelmente ocupava a quási totalidade do ensino prático. A duração do Curso era de 4 anos. A Anatomia era ensinada no primeiro ano; a Fisiologia no 2º; no 3º e 4º ministravam-se a Clinica Cirúrgica e Operações. Poder-se-á concluir que os estudos médicos no Porto não nasceram na Universidade, que a Anatomia está estreitamente ligada ao currículo nuclear, que era a Cirurgia, e que não estavam autonomizadas disciplinas de Medicina, como posteriormente veio a acontecer. Foi  uma fase incipiente da gestação do ensino médico, certamente exigida pela prática quotidiana que então predominava, já como ofício, e apesar da sua insipiência com a noção de disciplinas ordenadas cronologicamente, de que destacamos a Anatomia, que tinha exame prático na Casa de Anatomia, sita no Hospital em que tudo nasceu.

Esta situação necessitava de ser corrigida, pois apenas de treino se tratava, e ainda não de ensino, numa época em que já em vários países ou Cidades-Estados da Europa, havia ensino médico organizado, como em Bolonha, Pádua, Pavia, Salamanca, Oxford, Cambridge e, entre nós, em Coimbra, algumas das quais com desenvolvimentos de investigação notáveis, nomeadamente teorias de interpretação patogénica, a circulação, o estetoscópio, a infecção, os agentes microbianos, só para citar várias áreas de conhecimento e justificar o atraso  em que estávamos, já nas origens, no autodesenvolvimento que a investigação acarreta. É infelizmente um pecado original.

 

Também, ao contrário das suas congéneres, não teve origem numa Universidade, o que por si só não seria uma deficiência relevante, e que tem uma explicação conhecida. A Universidade de Coimbra, que foi a única que restou depois do Marquês de Pombal expulsar os jesuítas, com a consequente extinção da Universidade de Évora, nunca permitiu que se fundassem outras Universidades em Portugal e nas Colónias, o que teve como consequência que as Escolas Médico-Cirurgicas de Lisboa e Porto fossem anteriores às Universidades dessas Cidades, e que no Brasil, já as havia em Salvador e no Rio de Janeiro, quando após a implementação da Republica foram criada as Universidades de Lisboa e Porto.

Consciente da precariedade do ensino cirúrgico, o Cirurgião-mor do Reino, conseguiu convencer o Rei D.João VI, depois de obter um financiamento fortuito, a criação de duas escolas de Cirurgia no Hospital de S.José, em Lisboa, e no Hospital da Misericórdia no Porto. No texto do alvará importa reter a frase seguinte:...que em Outubro ..... principie no Hospital da Misericórdia um curso regular de Cirurgia em que se ensinem todas as diferentes disciplinas. Neste excerto estão os objectivos essenciais da denominada Real Escola de Cirurgia do Porto – A regulamentação do ensino que até então era já feito e a localização no Hospital da Misericórdia de todas as disciplinas. Este foi com efeito o acto fundador do ensino cirúrgico no Porto, concretizado na Sessão de abertura em 25 de Novembro de 1825 no Salão Grande do Hospital.

Podemos concluir que a base do ensino que precedeu a Real Escola de Cirurgia do Porto influenciou decisivamente as suas características  , ou seja, a importância estruturante da Anatomia e da Cirurgia. Alguns aspectos do seu regulamento devem ser salientados, pela importância que vão ter nos desenvolvimentos futuros. A função directiva era exercida, em Lisboa pelo Enfermeiro Mór do H.S.José, e  é  atribuída no Porto a um seu delegado. Isto é, mesmo num Hospital de uma Instituição privada, a direcção do ensino era independente e centralizada em Lisboa. O curso constava de 5 anos, tendo sido acrescentadas às cadeiras já existentes, Matéria Médica, Farmácia e Higiene, Patologia externa, Terapêutica e Clinica Cirúrgica, Medicina Operatória e Arte Obstétrica, Patologia Interna e Clinica Médica. Foram nomeados 5 lentes proprietários e 2 lentes substitutos. Foram instituídas algumas precedências, nomeadamente em relação à aprovação em Anatomia. È de assinalar que 3 Professores eram profissionais do próprio Hospital da Misericórdia, outros 2 tinham estudado em Coimbra e um, veio do exército, onde era Cirurgião Mor.

Embora a criação da real Escola de Cirurgia mostre um grau muito distante do ensino que a precedeu, tinha pecados originais que vieram a ter um influência decisiva até hoje: não tinha casa própria, ocupava um edifício sem interferência directa da tutela estatal do ensino, o que já então levava a que fosse tolerada como um corpo estranho no Hospital da Misericórdia. Como seria de esperar tinha menor dotação, menos disciplinas, e os lentes recebiam remunerações inferiores às dos seus Colegas de Lisboa.

 

O absolutismo miguelista levando ao encarceramento de alguns lentes e ao exílio de outros, perturbou profundamente o funcionamento da Escola, a qual depois do desembarque das tropas liberais e do cerco da cidade do Porto encerrou. A despeito da interferência directa de Almeida Garrett, Secretário do Ministério do Reino, só após o fim das lutas liberais, em 1834, a Escola Cirúrgica retomou o funcionamento regular, sem alterações curriculares relevantes, mas com diminuição importante dos alunos, particularmente nos últimos 3 anos, como seria de esperar, pela guerra civil, e pelo regresso de alguns cirurgiões à formação da época anterior à Real Escola de Cirurgia.

Após a revolução de Setembro, que teve como objectivo o regresso à Constituição de 1822, emergiu como figura ímpar de reformista na Educação, Passos Manuel, que teve implicações profundas no ensino médico e que essencialmente foram a mudança da designação da Real Escola de Cirurgia para Escola Médico-Cirúrgica do Porto, a que correspondeu a autonomização das áreas da Medicina. Além desta mudança foi introduzido o ensino de Química, Zoologia e Botânica, que poderia ser feito em outras Instituições. Havia nove Cadeiras, 4 de Medicina e 5 de Cirurgia, 5 anos de escolaridade, nove lentes proprietários, quatro substitutos e dois demonstradores. Ao que parece a inversão da pirâmide vem de longe.

A atribuição aos Professores ...”da escolha dos doentes que fossem necessários e julgados mais próprios para as suas enfermarias de ensino das quais tinham o governo médico” mostra os generosos propósitos do legislador, mas constituíram fonte de conflito, que se estendeu até aos nossos dias. Foi também um desígnio permanente insistir na fragilidade do ensino prático e considerar objectivo prioritário do ensino mostrar e demonstrar.

Um dos pontos de reflexão desta Reforma é a capacidade de encontrar na própria Instituição os recursos humanos com a competência exigida. Em parte resultou da transferência de lentes de Cirurgia para Medicina, o que interpreto como ausência de clivagem profunda entre as duas matérias nos primórdios da vida da nossa Instituição. Finalmente, o Regulamento obrigava a que o Director fosse nomeado pela tutela, não concedia praticamente nenhuma autonomia aos Professores e aos alunos, pois a metodologia que deviam seguir e a ordenação das matérias era fixada por Decreto. Os exames incluíam uma prova prática e um Acto Grande com defesa de uma dissertação de Cirurgia e 2 proposições de Medicina e Cirurgia.

Embora tivesse sido curto, o Ministério de Passos Manuel, a profundidade da Reforma fez com que a estrutura curricular permanecesse inalterada, no essencial até à proclamação da Republica.

Com efeito, limitaram-se a autonomizar algumas Cadeiras, particularmente, Anatomia Patológica, Higiene, Medicina Legal, Histologia e Anatomia Topográfica.

 

Em 1883, após longa incubação, foi inaugurado um edifício de um piso em frente do Hospital de S. António, que embora constituísse um progresso pela deslocalização de algumas àreas, como a Anatomia e áreas afins e Fisiologia mas, como é habitual estava longe de preencher as necessidades e, sobretudo tornar possível o seu desenvolvimento, imprescindível se comparamos com as suas congéneres europeias, e que foi demonstrado pela sua curta vida. Outro aspecto desfavorável foi manter o ensino da Medicina e da Cirurgia no Hospital de S. António, aonde, como já referimos, se sentiam como corpo estranho, não tendo acesso ao ambulatório e ao Serviço de Urgência, este ultimo parcialmente corrigido nos últimos quatro anos de coexistência entre as duas estruturas, a Faculdade de Medicina do Porto(FMUP) e o Hospital da Misericórdia

Um dos aspectos mais relevantes das Memórias, é a importância social e política dos lentes proprietários da Escola Médico-Cirurgica, que eram nas diferentes áreas profissionais os mais conceituados e politicamente desempenharam os cargos mais elevados a nível local e nacional.  

A confirmar esta reflexão, Alberto Pimentel escreveu, “que havia, então, no Porto uma classe social, os médicos,  que ombreava em evidência com os titulares e os argentários.

Com o advento da República foram criadas as Universidades de Lisboa e do Porto. No que a esta ultima se refere, era constituída pela Faculdade de Ciências, pela Faculdade de Medicina e pela Faculdade do Comércio. Embora a concessão de autonomia económica e científica, o modo mais democrático da escolha do Reitor, a designação dos órgãos de governo: o Senado, a Assembleia Geral de Professores, Conselhos das Faculdades e Directores, constitui, pelo menos formalmente, alguma resposta ao acesso previsivelmente mais elevado de alunos a frequentar as Universidades.

No que diz respeito à FMUP o efeito foi muito superficial: Alargamento do pessoal, aumento do número das cadeiras, recrutamento de primeiros e segundos- assistentes, obrigatoriedade de assistência dos alunos às aulas práticas, mas não às teóricas. Contudo, nenhum dos grandes problemas que afectavam o ensino médico, identificados nas Instituições que as precederam, foram sequer assumidos. Com efeito, a Escola continuava com instalações próprias muito deficientes, o ensino clínico era feito, por favor, num Hospital, que nem ao Estado pertencia, ao contrário de Coimbra e Lisboa. A investigação, alguma de excelente nível, foi quase sempre experimental, nomeadamente na Anatomia e Histologia. A investigação clínica não existia, se a entendermos como a investigação à cerca de doenças ou de doentes. Havia certamente investigação experimental excelente feita por clínicos e cirurgiões, mas que reforçava os laboratórios aonde eram praticadas, ou então resultantes de estágios na Europa, mas não contribuíam para o desenvolvimento do ensino e da aprendizagem clínica com as características, que Flexner e W. Osler tinham definido na John Hopkins, e que era a introdução do método clínico na prática Médica, no início do século XX.

 

Na primeira metade dos anos 30, o edifício de um piso foi ampliado permitindo abrigar em condições francamente melhores do que as existentes, o Instituto de Anatomia do Prof. Pires de Lima, o Museu de Anatomia, os laboratórios de Fisiologia e Química Fisiológica, o laboratório de Farmacologia, os Serviços de Anatomia Patológica e Patologia geral e Laboratório Nobre, a Biblioteca com um importante acervo, o Salão Nobre, 4 Anfiteatros, e o Instituto de Histologia e Embriologia Abel Salazar. Esta remodelação, bem como a construção da Maternidade Júlio Diniz, para o ensino da Obstetrícia e Ginecologia fica-se a dever à influência do Prof. Alfredo Magalhães, Ministro da Instrução de alguns governos. Do ponto de vista curricular, foram publicados vários diplomas que tiveram como objectivo integrar a Física, Química, Zoologia e Botânica no Curso de Medicina, embora ensinadas na Faculdade de Ciências, as quais com as Cadeiras dos 3 primeiros anos passavam a constituir o 1º ciclo. O segundo ciclo era ensinado no Hospital da Misericórdia e alguns estabelecimentos anexos, como a Maternidade Júlio Diniz. O 3º ciclo compreendia o estágio complementar, durante o qual o aluno podia preparar a sua tese. Este ciclo que constituía uma oportunidade rara para a introdução dos alunos em projectos de investigação, podendo mesmo assumir a liderança, e propiciava a escolha das “pepitas de ouro”, que permitiriam a construção de um projecto de desenvolvimento para a Instituição, e levava, ainda os que se dedicassem à Clínica, a adquirir o rigor, a metodologia e avaliação crítica, características para adquirir competência na nossa profissão . Infelizmente, este 3º ciclo foi extinto, recuperado em 1954 e definitivamente terminado há mais de 25 anos. Entendo de tal modo gravoso o seu desaparecimento, que vou desde já antecipar um dos desígnios e que é a sua restauração ainda que em outros moldes.

Durante o Estado Novo, além das consequências do controlo governamental a todos os níveis da condução das Instituições, as mudanças são irrelevantes, como, por exemplo, a substituição da designação dos professores Ordinários por Catedráticos. Houve, contudo, duas intervenções com repercussão muito directa na FMUP. A 1ª, foi a construção do Hospital de S.João, inicialmente apelidado de Hospital Escolar de S. João. A 2ª, já no reinado de Marcelo Caetano, por influência do Ministro da Educação Veiga Simão foi o aumento extraordinário de estudantes que chegou a atingir nos anos 70 mais de 5 centenas nas cadeiras clínicas e que levaram à fundação da Escola de Nutricionismo, para amortecer os fluxos, e à implementação de um numero clausus, que tem vindo a ser aumentado com gradualismo sensato até porque não há qualquer construção nos últimos 25 anos no edifício da Faculdade, para além de uns pré-fabricados cuja semivida já terminou antes do 25 de Abril. Contudo, nem mesmo em novas instalações esta massificação é compatível com o elitismo que deve caracterizar as Instituições do ensino superior.

Quanto às difíceis ligações com o Hospital é necessário recuar até às suas origens para as tentar entender. O Hospital de S.João, bem como o de Stª Maria foram concebidos pelo Arquitecto alemão Hermann Distel autor da Clínica Universitária de Berlim. O desenho foi feito nos anos 30, antes do alucinante progresso técnico e profissional que se observou após a 2ª guerra mundial. A distribuição dos espaços correspondeu às cadeiras do Currículo da Reforma de 49, não tendo em conta as especialidades que, entretanto se destacaram da Medicina, com a excepção da Neurologia, da Pneumologia e da Dermatologia, o que produziu uma erosão progressiva da própria Medicina, com consequências relevantes na assistência, ensino e, mesmo investigação, da área que desde as origens até aos anos 60, foi um dos factores estruturantes da assistência e do ensino pré-graduado. Não há distribuição de áreas consonantes com a actual prevalência de doentes, as enfermarias têm camas excessivas, as instalações sanitárias são poucas e mal apetrechadas, não há espaços para o ensino e mesmo para o trabalho médico . Como dizia um colega de Lisboa “aqueles hospitais foram feitos para que os doentes nos vejam e não para que nós os vejamos”. O fraccionamento das grandes áreas em 4 unidades e na Medicina além disso, sua ocupação por especialidades dela derivadas, em vez de um discurso aberto e construtivo das sua relações e não  posições paroquiais que colidem com os esforços que se tem feito no sentido de eliminar a existência de dois quadros como acontece actualmente.

 

É um facto histórico, que na Cerimónia inaugural, presidida pelo PR, o Orador foi o Ministro da Educação, o que estava de acordo com a designação de Hospital Escolar. É minha convicção que a comissão Instaladora pensou que o Hospital podia apenas ensinar e prestar assistência aos doentes escolhidos para o ensino, copiando parte do modelo da Escola Médico-Cirurgica. Rapidamente as autoridades centrais (Ministério do Interior) se aperceberam que em 1959, a zona norte não podia prescindir  da utilização desta estrutura, e do seu corpo clínico em complementaridade com o Hospital de S.António na resposta às solicitações cada vez mais acentuadas dos serviços hospitalares, nomeadamente de doentes agudos. E como sempre há um detonador foi, neste caso, o acidente ferroviário de Custóias, que fez abrir o Serviço de Urgência. Entendo, hoje, que o erro de perspectiva, poderia ter sido evitado se o Hospital tivesse uma dimensão muito menor, organizado, a exemplo dos Hospitais norte-americanos, numa estrutura departamental, com áreas especificamente destinadas para o ensino e para a investigação clínica, e pela construção no espaço que restaria de um edifício para as disciplinas do 1º ciclo. Aproveito para afirmar, visto não ser um desígnio, mas uma exigência, que as cadeiras, ditas básicas, devem permanecer integradas com o ciclo clínico, embora com um relacionamento mais sustentado e institucionalmente definido. Esta posição foi muito suportada pela reflexão sobre as Origens e as Memórias em que há coexistência no acto fundador e na capacidade estruturante da Anatomia e da Cirurgia.

Os meus desígnios para melhorar a capacidade nas árias de ensino e investigação passam pelo alargamento a todo o Hospital do ensino pré-graduado, incluindo o internamento, o ambulatório e a urgência, o que passa pela definição de árias de ensino, enquadradas em novas estruturas hospitalares.

Após o 25 de Abril um dos efeitos colaterais da democratização foi o enorme reforço do corporativismo de interesses com profunda influência no relacionamento triangular sociedade, política e ciência. As pessoas individuais perderam a capacidade de avaliar as novas tecnologias com referência a valores e objectivos éticos, independentes do objecto tecnológico, em si próprio. Dado o aparecimento fulgurante de novas tecnologias, alguns dos objectivos éticos podem ser contraditórios, como por exemplo o princípio da beneficência e a não manipulação do embrião para a extracção de células estaminais. A ética tenderá a ser minimalista, tentando perservar os valores indispensáveis à coesão social, mas definindo o máximo dos mínimos, ou o mínimo dos máximos.

Necessitamos que os decisores tenham a virtude que Aristóteles assumiu como a principal - a coragem, e não se limitem a identificar os problemas e em nome do diálogo e do consenso, que realmente é por vezes, falta de coragem, não seja implementada uma organização hospitalar, que tem muitos anos de atraso, e cuja manutenção se baseia em discursos de cariz paroquial, já que nem mesmo na FMUP o modelo vigente em 59, se mantém.

 

Mesmo para a solução dos conflitos Hospital/ Faculdade, depois da aprovação da resolução elaborada para esse objectivo pela Comissão Mista, há necessidade imperiosa de um sinal no terreno, com uma estruturação que implique a cooperação de todos os médicos de modo a concretizar o quadro único e lançar o projecto da carreira única.

 

O extraordinário progresso científico e tecnológico no Século passado induziu uma cultura médica, em que as técnicas, como por ex . a imagiologia de 2ª e 3ª geração, a revascularização coronária e os novos medicamentos em Oncoterapia, a Biologia molecular fossem encarados como um fim, em si mesmas, e não como novas, e em alguns casos eficazes, as novas tecnologias. Além do fascínio que as técnicas exercem, em relação à pratica competente do método clínico, assistiu-se à diminuição da mortalidade infantil, ao aumento espantoso da esperança de vida e à diminuição da natalidade, que conduziu a uma alteração demográfica muito acentuada com  tendência para a inversão da pirâmide etária. Se na população em geral este facto tem consequências sociais muito importantes na Saúde, ao acarretar o rápido aumento das admissões urgentes, e por serem portadores de várias doenças interrelacionadas requererem uma abordagem de base mais larga. O aumento da frequência de neoplasias em idosos com co-morbilidade, e disseminação oncológica implica o desenvolvimento de um nova abordagem – a Medicina paliativa, que deve ser ensinada na pré -graduação, ao mesmo nível da Medicina  Preventiva e Curativa. È, também meu desígnio, que rapidamente se implante o ensino da Demografia e da  Sociologia, já que o insucesso da prevenção não é geralmente resolvido só a nível das estruturas de Saúde, mas sim na arena política A formação pré-graduada em ciências da Comunicação, por médicos e outros profissionais, constitui uma exigência, pois a informação adequada e conveniente ao doente e à família é o único método adequado para conseguir as parcerias indispensáveis ao respeito à autonomia do doente, valor central da dignidade Humana.

A Declaração de Geneva, de 1948, consequência directa da II Guerra Mundial, o Código de Nuremberga e a Declaração de Helsínquia nas suas sucessivas modificações, que realçam o conceito da necessidade do consentimento voluntário esclarecido para a prática da investigação em seres humanos e exprimem duas características muito significativas da Medicina : a elevada responsabilidade face às necessidades, desejos e direitos do doente, enquanto pessoa ; e a coexistência da exigência do equilíbrio entre os direitos do doente, como indivíduo autónomo, e os da Sociedade. Hoje, a convergência de inúmeros vectores, de que são de realçar o avanço vertiginoso da Ciência e das novas tecnologias, a melhoria da educação pública, a noção de democracia participativa, os movimentos dos direitos civis, incluindo as associações de doentes e dos direitos dos consumidores, as implicações jurídicas e económicas na medicina, a heterogeneidade moral da nossa Sociedade, a globalização política, económica e social, a acessibilidade à informação que reduz o espaço e o tempo, levaram numa primeira fase à maior evolução na ética médica do que no inteiro período histórico precedente. Se acrescentarmos o papel que a comunicação social, particularmente a televisiva , tem nos comportamentos individuais e de grupo, entendemos o carácter banalizado e fundamentalista que a ética adquiriu, na Medicina, na Comunicação Social, na Banca, no Futebol, na política, enfim, em todas as actividades que acarretam riscos e decisões. Esta situação corresponde a um biombo opaco de desresponsibilização, ou à consciência de procedimentos carentes de ética.

 

Começarei por rejeitar a evocação banalizada da expressão, politicamente correcta, que em termos da actual Sociedade pós-moderna está globalizada, e tem características neo-liberais, da Medicina baseada na evidência, ou mais adequadamente, em provas. De facto para além de ser há muito, pelo menos desde o Século XIX, um conceito implicitamente adquirido ( ou será que a descoberta por Koch da etiologia da tuberculose não terá sido baseado em provas?). Como Sackett, o seu Autor, acho que este “mandamento” serviu a Industria Farmacêutica para triunfar na competitividade feroz actual de medicamentos idênticos,  no limiar da Farmacogenética, que só por si a tornará obsoleta, e para sustentar as Agências, publicas e privadas de gestão dos Cuidados de Saúde para atitudes de puro e duro economicismo. Serão estes objectivos éticos?, ou mesmo indicadores da qualidade do ensino e da aprendizagem. Prefiro à Medicina baseada na evidência a Medicina baseada na competência, que hoje pouco vimos referir e de que tanto necessitamos.

Outro ponto de grande actualidade é a influência decisiva do lucro nos comportamentos éticos. A despeito de algumas importantes organizações internacionais proibirem a clonagem para fins reprodutivos, outras não permitirem patentear o Genoma e a interdição de manipulação do embrião, assegurado de modo hipócrita por Clinton e Tony Blair, o facto é que a Medicina reconstrutiva é previsível a curto prazo, pela implementação de células estaminais multipotenciais, que, neste momento, só serão rentáveis a partir do embrião. Não será, por acaso, que ontem, 25 de Janeiro os Lordes aprovaram a clonagem de embriões, e a retirada de células estaminais para posterior tratamento, apenas com a limitação de 15dias, consoante o objectivo terapêutico. A melhoria que se prevê em doenças crónicas de grande prevalência,com tratamento inadequado no que diz respeito à qualidade e duração da vida, e a enormidade das somas envolvidas, faz-nos pensar que afinal as grandes afirmações de regulação ética dos desenvolvimentos a partir do Genoma são de tal modo minimalistas, que apenas proíbe o que não interessa à Industria, como a clonagem para fins reprodutivos, ou porque a tecnologia consegue ultrapassá-las pela clonagem in vitro e a utilização do essencial, que são as células estaminais. É mais um produto da globalização e do neoliberalismo ( trade off) e tenho de o dizer o embrião poder ser considerado “matéria prima.”, pelos Parlamentos, e governos das grandes potências. Acho que esta reflexão deve ser discutida durante a pré-graduação com a participação de eticistas, clínicos , alunos, de modo aos alunos terem plenamente conhecimento dos desafios do futuro.

Os meus desígnios em relação a investigação clínica são totalmente coincidentes com os propostos no Contrato-Programa para o desenvolvimento e qualidade, nomeadamente na investigação clínica, cuja deficiência tem  causas externas evidentes. Apoio, contudo, que haja, já um fórum de debate, ou mesmo um observatório Institucional, ligado ao Conselho Científico, para que possamos conhecer melhor o que todos fazemos, de modo a potenciar sinergias, que não podem ser encontradas ao acaso.

 

Antes de terminar, e aproveitando a presença do Senhor Reitor, terei que dizer-lhe que a nossa Universidade tem tido uma postura muito federal, pois o feedback que recebemos são apenas as limitações orçamentais, os critérios de gestão, a definição do numero de Professores, a necessidade de nestas matérias consensualizar as Escolas, aumentar o ingresso de alunos sem contrapartida financeira, e face à necessidade do acompanhamento tutorial, manter o rácio de 1/6, pouco menor que há 70 anos ( 1/7,5). Nós, que antes da gestão electiva considerávamos que a Universidade representava o poder central, somos forçados a concluir que após a Autonomia cuja maternidade de deve à Sr.ª Tatcher, a Universidade apenas pode fazer o que o financiamento do Orçamento de Estado lhe permite. Acho que na era postatcheriana a UP pode e tem de exercer sobre as Faculdades e com elas uma actividade mais interventora e indutora de desenvolvimento de todas e de cada uma.

A despeito das condições que têm sido dadas à FMUP, os relatórios anuais, a capacidade de mobilização e competência que se traduz na Proposta enviada ao Grupo de Missão, o prestígio no País e no estrangeiro, leva-me ao terminar pedir que volte a reinar o espírito de participação e unidade que se verificou na feitura da referida proposta e que se abandone de vez a posição catastrofista, sempre com base na alteridade de responsabilidade, tão frequente e tão negativa no Portugal de Hoje. Tenhamos todos a Coragem de ter Coragem.

 

PORTO, 31 de Janeiro de 2001

 

Last revised: Julho 22, 1999.

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