Intolerância Ortostática. Revisão e Caso Clínico [65]

JOÃO FREITAS*, JORGE ALMEIDA**, ELSA AZEVEDO***, MÁRIO JORGE CARVALHO**,
OVÍDIO COSTA****, A. FALCÃO DE FREITAS*****

Centro de Estudos da Função Autonómica. Hospital de São João

Rev Port Cardiol 1998;17(9):715-720

 

RESUMO

Revisão dos síndromas de intolerância ortostática e descrição de um caso de taquicardia postural incapacitante.

Palavras-Chave
Taquicardia postural; Teste de tilt;Intolerância ortostática; Sistema nervoso autónomo

 

SUMMARY

Orthostatic Intolerance. Overview and Clinical Case

An overview is made of the orthostatic intolerance syndromes and a clinical case of postural tachycardia syndrome.

 

Key-Words

Postural tachycardia; Tilt test; Orthostatic intolerance; Autonomic nervous system

 

SÍNDROMAS DE INTOLERÂNCIA

ORTOSTÁTICA

Definição

Está estimado que cerca de 500000 norte-americanos padeçam de algum grau de intolerância ortostática. Apesar desta realidade, estas doenças são raramente diagnosticadas e dentro das patologias do sistema nervoso autónomo as de maior dificuldade de diagnóstico.
Estas alterações afectam essencialmente jovens, sobretudo antes dos 35 anos, e são mais frequentes no sexo feminino. O início da sintomatologia é geralmente súbito e o impacto na qualidade de vida e no trabalho quotidiano é significativo. Frequentemente, o diagnóstico destas patologias passa despercebido, sendo geralmente atribuídas a problemas do foro psiquiátrico, devido à natureza da sintomatologia (1).
A posição de supino resulta numa série de respostas posturais reflexas, reguladas pelos ramos do sistema nervoso autónomo e baroreflexos arteriais e mecanoreceptores cardiopulmonares, na tentativa de compensação do efeito da gravidade na distribuição do volume sanguíneo. Nestas patologias existe uma resposta inapropriada à mudança da posição corporal de decúbito para supino.
A resposta adaptada à mudança de posição do corpo humano consiste na estabilização das variáveis hemodinâmicas para a posição de  supino em aproximadamente 60 segundos.
Durante este processo, a frequência cardíaca aumenta cerca de 10 a 15 batimentos por minuto, a pressão diastólica aumenta cerca de 10mmHg, com apenas uma ligeira flutuação da pressão sistólica.
Os indivíduos que padecem de Intolerância Ortostática, têm um aumento exagerado e excessivo da frequência cardíaca na posição de pé, de maneira a que o sistema cardiovascular necessita de trabalho suplementar para manter a pressão arterial e o fluxo cerebral adequados e constantes.
A passagem à posição de supino (ortostática) também influencia uma resposta neuro-humoral, levando a alterações nos níveis de vasopressina, renina, angiotensina e aldosterona – todas elas envolvidas na regulação da pressão arterial.

Adicionalmente, os baroreceptores arteriais, particularmente os situados no seio carotídeo, possuem um papel importante na regulação da pressão arterial e nas respostas reflexas às alterações da postura (2). À medida que o coração bombeia o sangue para a aorta, a aurícula esquerda é preenchida passivamente como resultado da força exercida pela pressão venosa sanguínea. Os receptores localizados na aurícula esquerda respondem, proporcionalmente, à pressão exercida pela pressão venosa central. Por consequência, uma queda nessa pressão venosa levará ao despertar de uma resposta compensatória na tentativa de aumentar a pressão arterial.

Qualquer alteração nestes processos, ou na sua integração, poderá resultar numa resposta inapropriada à modificação da postura para ortostatismo, levando a sintomas incapacitantes, incluindo síncope.

História

A resposta inapropriada à posição de supino há muito que é conhecida, sendo-lhe habitualmente atribuída uma grande diversidade de nomes na literatura médica internacional. Estes nomes incluem:

– Coração de soldado, Coração irritável;
– Astenia neurocirculatória;
– Disautonomia parcial;
– Hipotensão ortostática hiperadrenérgica;
– Astenia vasomotora, Síndroma de DaCosta.

Actualmente, parecem existir três categorias principais para descrever condições de Intolerância Ortostática:

• Síndroma de Taquicardia Postural Ortostática (STPO) (1);
• Disautonomia associada ao Prolapso da Válvula Mitral;
• Hipovolemia idiopática (2).

Contudo estas condições são muito semelhantes na apresentação e na abordagem diagnóstica dos doentes e na estratégia terapêutica, parecendo existir algum grau de sobreposição na terminologia usada para descrever estas situações.

Sintomas

Os sintomas geralmente associados aos síndromas de Intolerância Ortostática são:

• Fadiga excessiva;
• Intolerância ao esforço;
• Síncope recorrente ou pré-síncope;
• Tonturas;
• Náusea;
• Taquicardia;
• Palpitações;
• Alterações visuais;
• Visão turva;
• Visão tunelada;
• Trémulo;
• Fraqueza – nomeadamente dos membros inferiores;
• Mal estar torácico indefinido;
• Dispneia atípica;
• Flutuações do humor;
• Enxaquecas e outras cefaleias;
• Sintomas gastrointestinais.

Abordagem

Nos últimos anos têm surgido dados novos e controversos na tentativa de explicação dos mecanismos envolvidos nestas perturbações, tornando-se confuso não só para o doente em questão, como para o médico assistente. É necessário um esclarecimento claro destas alterações e da forma como eficazmente se devem abordar.
Como resultado, a abordagem destes doentes deve ser individualizada e pode incluir métodos farmacológicos e não farmacológicos.

Prognóstico

A maioria dos doentes afectados com os Síndromas de Intolerância Ortostática rapidamente sentem melhorias no seu estado clínico e apenas tem sintomatologia ligeira. Contudo, em alguns casos, esta situação torna-se muito debilitante, lançando um desafio importante no tratamento efectivo. Investigações adicionais nas premissas que estão na base destas alterações são necessárias para o desenvolvimento de uma estratégia terapêutica mais eficaz,nomeadamente na pesquisa de alterações do sistema nervoso autónomo e dos baroreflexos (3).
Para muitos, as alterações provocadas por estas patologias parecem ser de duração relativamente breve, enquanto que noutros, existe uma progressão da natureza da doença, podendo ocorrer um agravamento da sintomatologia.

SÍNDROMA DA TAQUICARDIA POSTURAL ORTOSTÁTICA (STPO)

Definição

O síndroma de taquicardia postural ortostática (STPO) define-se como um síndroma de sintomatologia ortostática associada a um aumento na frequência cardíaca de pelo menos 30bpm (l). Normalmente separa-se o STPO ligeiro do STPO florido. Aqueles doentes em que a frequência cardíaca não ultrapassa os 120 bpm nos primeiros 5 min de teste de tilt são considerados ligeiros, enquanto que aqueles que ultrapassam permanentemente os 120 bpm são considerados floridos.

Características clínicas

A idade de apresentação é geralmente entre os 15 e 50 anos. A relação feminino: masculino é cerca de 4:1. A maioria dos doentes quando são estudados já apresentam sintomatologia com mais de 12 meses de evolução. Os sintomas ortostáticos são: tontura; visão turva; palpitação; trémulo; fraqueza (especialmente das pernas). Menos frequentemente existe: hiperventilação; ansiedade; dor torácica; extremidades frias e acrocianóticas (marmoreadas); cefaleias; enxaqueca e alterações do sono. Os sintomas são diferentes dos doentes com hipotensão postural (Quadro I). Os sintomas do STPO são geralmente devidos à perfusão cerebral alterada e em parte aos mecanismos compensatórios autonómicos (4).
Aproximadamente 50% dos doentes têm, nos seus antecedentes, uma infecção vírica. Algumas doentes têm uma variação cíclica significativa da sua sintomatologia, muitas vezes relacionada com o ciclo menstrual. Algumas têm ciclos de vários dias de intensa intolerância ortostática (requerendo por vezes infusões de litros de soluções salinas), seguida de períodos de maior acalmia.

STPO é um síndroma heterogéneo e vários mecanismos se reconhecem, apesar de não provados, na fisiopatologia desta patologia. Os doentes com neuropatia autonómica podem desenvolver este síndroma. A desnervação autonómica dos membros leva a uma redução do tónus vascular periférico, mas não existe hipotensão postural pois está prevenida por uma intensa taquicardia reflexa (este fenómeno não é raro em algumas fases de neuropatia diabética). A segunda categoria de STPO neuropático é idiopática, geralmente mediada imunologicamente, ocorrendo uma infecção vírica em cerca de metade dos doentes. Alguns doentes desenvolvem síncope e são muitas vezes e erradamente diagnosticados como sofrendo de síncope neurocardiogénica. Alguns doentes têm prolapso da válvula mitral. Alguns doentes têm intolerância ortostática por descondicionamento do baroreceptor arterial, como os doentes que estão acamados durante longos períodos de tempo. Alguns, raros doentes, têm hipertensão ortostática e oscilações amplas da pressão arterial. Parece que a origem do STPO nestes doentes são alterações do tronco cerebral.

Testes de função autonómica

Metade a 2/3 dos doentes tem neuropatia autonómica das «extremidade» (restrita) nos testes de função autonómica, demonstrando alterações dos testes vasomotores e de sudação, enquanto que os testes da variabilidade da frequência cardíaca são considerados normais em condições basais. A resposta cardiovascular ao ortostatismo (teste de tilt) é anormal. Frequentemente a frequência cardíaca aumenta para 120 a 170 bpm de uma maneira progressiva e sustentada. Poderão existir oscilações importantes e amplas da frequência cardíaca e da pressão arterial, denotando disfunção pelo menos transitória dos baroreflexos amortecedores. O doseamento da noradrenalina é normal na posição de decúbito e aumentada ou normal com o ortostatismo, apesar de sempre desproporcionada em relação ao valor da taquicardia (l, 4).

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico de STPO é feito na presença de sintomas ortostáticos associados a um aumento excessivo da frequência cardíaca. O diagnóstico diferencial é com situações de pânico, síndroma da fadiga crónica, somatização ansiosa, descondicionamento físico e hipotensão ortostática neurogénica. A diferenciação do STPO com situações de pânico ou de ansiedade extrema, é que no STPO os sintomas são dependentes da postura e apenas aparecem na posição ortostática e desaparecem com o decúbito e laboratorialmente é possível encontrar alterações autonómicas e/ou do baroreceptor nos doentes com STPO.

Mecanismos do STPO

Alguns dos mecanismos de intolerância ortostática verificados nos doentes com STPO podem-se observar no Quadro II. Incluem alteração do tónus vasomotor, sobretudo do venomotor, na neuropatia autonómica das «extremidades». Outro mecanismo é a hipersensibilidade dos receptores ß adrenérgicos, manifestando uma resposta excessiva da frequência cardíaca ao ortostatismo e à infusão de isoprenalina. A taquicardia em resposta ao tilt, o trémulo e a ansiedade representam manifestações da hipersensibilidade aos receptores ß adrenérgicos. Em alguns doentes existe hipovolemia (2). Hiper ou hipossensibilidade aos receptores a adrenérgicos também já foram sugeridos. Pool venoso excessivo é observado em alguns doentes que geralmente apresentam coloração azulada dos pés enquanto em supino.

Abordagem terapêutica

Ainda é controversa e deve ser sempre individualizada. Nem todos os doentes necessitam de tratamento. Os doentes com STPO florido, isto é, com sintomatologia severa e incapacitante, necessitam de avaliação autonómica e cardíaca (ECG, Holter e Ecocardiograma; EEFi se existe cardiopatia estrutural). Sempre que se justifique deverão ser enviados a laboratórios de função autonómica de referência para se estudar o volume plasmático, insuficiência autonómica, alteração das sensibilidades dos receptores a e ß e o ganho do baroreceptor arterial.

O doente descondicionado e hipovolémico poderá ser tratado de maneira a que durma com a cabeça alta e com expansão do plasma utilizando solutos salinos e/ou fludrocortisona (5).

O doente com pool venoso aumentado tem uma abordagem terapêutica diferente. O uso de meias elásticas potentes pode resolver o problema. Midrodine parece ter eficácia nesses doentes.

Os doentes com insuficiência adrenérgica periférica, com desaparecimento da fase II de Valsalva, são tratados com fludrocortisona e um agonista a, geralmente a midrodine.

Os doentes com STPO florido e muito sintomáticos, provavelmente têm hipersensibilidade dos receptores ß adrenérgicos, pelo que respondem muito bem aos bloqueadores beta.

Existe um pequeno grupo de doentes que têm respostas muito oscilantes da frequência cardíaca e da pressão arterial ao tilt, por vezes com pressões sistólicas que oscilam durante o ortostatismo entre 200/250 mmHg. Estes doentes com grande instabilidade autonómica e disfunção dos baroreceptores arteriais parecem responder ao fenobarbital oral ou em alternativa à clonidina.

CASO CLÍNICO

RMPT, 22 anos, sexo feminino. Refere ter tido meningoencefalite vírica aos 11 anos.

Enxaquecas frequentes desde essa data. Aumento abrupto de peso (30 kg em poucos meses) aos 15 anos. Nessa altura realizou estudo hormonal completo, normal. Foi medicada com fenfluramina e posteriormente com fluoxetina e dieta com restrição salina.

Internada num hospital central por poliartralgias, rush cutâneo, vómitos e febre aos 17 anos. Observada por várias especialidades, incluindo neurologia, psiquiatria, medicina interna e reumatologia tendo tido alta sem diagnóstico.

Iniciou corticóides orais com alívio das artralgias mas iniciou sintomas de intolerância ortostática (tontura, desequilíbrio, visão turva, trémulo, palpitação, agitação, náusea e vómitos).

A sintomatologia ortostática surgia sobretudo associada ao calor, luz intensa e fumo.

Desde Julho de 95 as crises aumentaram de frequência e de intensidade tornando-se francamente incapacitantes e acompanhadas de ansiedade extrema. Foi então observada novamente por neurologia e psiquiatria sem diagnóstico.

Em Outubro 95 deixa de ter sintomas.

Em Junho 96 repete ainda com maior intensidade e frequência os sintomas de intolerância ortostática (visão turva, agitação, náusea, vómitos, tonturas, trémulo, ansiedade extrema e síncope) que apenas aliviavam com o decúbito.

Referenciada a um laboratório de função autonómica em Julho 96 por neurologia. O exame físico, ECG, Holter e Ecocardiograma foram normais.

Realizou teste de tilt para estudo do sistema nervoso autónomo, actividade do baroreceptor arterial, doseamento de catecolaminas e influência da postura nessas variáveis. A metodologia usada no nosso laboratório (3) utiliza, após prévia digitalização do electrocardiograma e da pressão arterial, a análise espectral da variabilidade da frequência cardíaca e da pressão arterial calculada por método não paramétrico (transformada rápida de Fourier). O ganho do baroreceptor é calculado pelos métodos da regressão das sequências temporais e pelo índex alfa (coerência espectral acima dos 50% das bandas LF do intervalo RR e da pressão sistólica) e os parâmetros hemodinâmicos pelo método não-invasivo modelflow, desenvolvido por Wesseling, aplicado às características da curva de pressão arterial digital (3).

A doente teve reprodução dos sintomas com o teste de tilt a 70o com pré-síncope, tendo que abandonar a mesa antes desta retornar à posição de 0o. Foram calculados os parâmetros na posição de basal e de tilt, tendo a frequência cardíaca média aumentado de 85 bpm para 131 bpm, a pressão arterial sistólica, média e diastólica aumentou de 117, 77 e 59 mmHg para 148, 84 e lO2 mmHg, respectivamente. O débito cardíaco diminui com o teste de tilt de 4,43 L/min para 4,31 L/min enquanto que o volume sistólico reduziu-se de 53 ml para 33 ml. As resistências sistémicas totais aumentaram de 1397 dyn.s.cm-5 para 1887 dyn.s.cm-5 com o ortostatismo. O ganho do baroreceptor caiu de 10,8 mseg/mmHg para 5,8 mseg/mmHg e a variabilidade da frequência cardíaca (potência total) diminuiu de 600 mseg2 para 378 mseg2 e a variabilidade da pressão arterial sistólica (potência total) aumentou de 12 mmHg2 para 38 mmHg2. Estas variações induzidas pelo stress ortostático (teste de tilt) são comparadas percentualmente com um grupo de jovens normais (n=84) e de doentes com hipotensão postural incapacitante (polineuropatia amiloidótica familiar, n=54) como se pode ver nas Figs. 2 a 4. A doente iniciou dieta liberal em sal e metoprolol 100 mg BID, tendo-se tornado assintomática, tendo repetido o tilt 6 semanas após com normalização das variáveis hemodinâmica e autonómicas (ver Figs. 2 a 4). A doente após 20 meses de follow-up mantém-se assintomática e repetiu teste de tilt normal.

BIBLIOGRAFIA

1. Low PA, Opfer-Gehrking TL, Textor SC, Benarroch EE, Shen WK, Schondorf R, Suarez GA, Rummans TA. Postural tachycardia syndrome (POTS). Neurology 1995;45(suppl 5):S1 9-S25.
2. Fouad FM, Tadena-Thome L, Bravo EL, Tarazi R. Idiopathic Hypovolemia. Annals of Internal Medecine 1986;104: 298-303.
3. Freitas J. Influência do reflexo baroreceptor arterial e da modulação do sistema nervoso autónomo na regulação da homeostasia cardiovascular. Tese de Mestrado em Medicina Desportiva. Faculdade de Medicina do Porto, 1998.
4. Low PA, Opfer-Gehrking TL, Textor SC, Schondorf R, Suarez GA, Fealey RD, Camilleri M. Comparasion of the postural tachycardia syndrome (POTS) with orthostatic hypotension due to autonomic failure. J Auton Nerv Syst 1994; 50:181-8.
5. Rosen SG, Cryer PE. Postural Tachycardia Syndrome. Reversal of Sympathetic Hyperresponsiveness and Clinical Improvement During Sodium Loading. Am J Med 1982;72:847-50.

 * Assistente Hospitalar de Cardiologia.
** Assistente Hospitalar de Medicina.
*** Assistente Hospitalar de Neurologia.
**** Professor Associado de Medicina e Director do Centro de Medicina Desportiva do Porto.
***** Professor Catedrático de Medicina e Director do Centro de Estudos de Função Autonómica.

 

Recebido para publicação: Abril de 1998 • Aceite para publicação: Julho de 1998